Eu fumo há mais tempo, muito mais tempo do que eu criei o Hu3BR. Existem algumas ações, por assim dizer, que você como fumante faz como hábito. Eu gosto de prestar atenção na rua quando estou prestes a acabar mais um cigarro. Nesse curto período de tempo eu me questiono o porquê de alguém estar correndo na rua, às vezes uma comoção, outras vezes o mais puro silêncio. Apago o cigarro e retorno a minha vida. Sei que o processo é consciente e automático, mas “Apartment Story” (Steam) me fez ainda mais consciente das minhas ações do dia a dia — e o impacto que elas causam a curto e longo prazo.
O título da Blue Rider Interactive não poderia ser mais direto. Você assume o papel de Arthur que, em uma noite aleatória recebe uma mensagem de que alguém vai estar na sua porta às 21h. O saldo da sua conta está no negativo, mas isso é preocupação para outro dia. Arthur, como muitos de nós, estamos vivendo o caos que é a vida adulta em 202X. Contas para pagar, dinheiro que não rende, uma pilha de louças — seja ela figurativa ou não — para lavar. Como, ou se você vai lavar, é outra história.
O que me atraiu em “Apartment Story”, e prosseguiu por sua relativa curta duração de 2 ou 3 horas, dependendo das suas ações, é a capacidade da Blue River Interactive transformar uma história que, em outros meios, podia ter muito bem sido transformada em mais uma “visual novel”. Uma interatividade limitada a escolha de rotas (sei que estou sendo redutivo ao gênero em geral, e peço desculpas). Mas, o que “Apartment Story” tem de sobra é interatividade e escolhas.
Como eu apontei no começo do texto, eu fumo. Isto é uma rotina para mim; Arthur tem a sua própria rotina. Acordar, lavar o rosto, fazer a barba, preparar comida, ver a pilha de contas e notificações no seu smartphone. Ao invés de “simplificar” essa rotina em meros cliques de botões, a Blue River Interactive muda o simples ato de lavar uma louça, preparar comida e sentar para comer uma tarefa incrivelmente trabalhosa.
Clique com o botão do mouse direito para selecionar um item, depois outra vez para selecionar o segundo item, leve-os para a tábua, prepare a comida, depois pegue um prato e sente para comer. Nada é necessariamente fácil, direto. A vida adulta requer trabalho, manutenção, rotina.
Alguns segundos após as minhas primeiras garfadas e a campainha toca. Era Diane, uma antiga colega de quarto e um antigo amor. Ela estava lá apenas para pegar um “objeto”. O objeto em questão? Uma arma.
Mas antes de pegar a arma, Arthur e Diana conversam brevemente sobre o tempo em que passaram juntos. Por que não deu certo? Por que um, que estava apaixonado pelo outro, não decidiu investir em um relacionamento? “Apartment Story” deixa propositalmente muitas dessas questões em aberto.
Diana pede um trago da maconha de Arthur, ela sabe que ele ainda tem, e onde ele guarda – é difícil mudar velhos hábitos. Ela e Arthur dançam, cigarro em uma mão, cerveja em outra. “Como nos velhos tempos”, aponta o jogo. Mas os velhos tempos são isso, uma memória. A realidade é outra, e quando a peça-chave do jogo – a arma – entra em jogo, tudo vira de cabeça para baixo.
Sem entrar no território de spoilers, “Apartment Story” interliga o processo da rotina diária com a intensidade de picos da vida que muitas vezes chegam sem avisar. Um novo personagem entra em cena, e a vida de Arthur corre perigo.
Os minutos, as horas, os dias passam e cada vez mais a situação escala. Você vai sair com vida, você vai morrer? Alguém vai disparar esta arma, vão usá-la para algo maléfico? Porém, tudo pode ser ignorado se você… simplesmente não abrir a porta e seguir com o seu dia, talvez fazer mais comida, escrever, assistir um vídeo pornô na internet e se masturbar, tomar outro banho, fumar mais um cigarro. “Apartment Story” é igualmente sobre Arthur quanto é sobre o jogador em si.
A vida adulta é permeada de escolhas, algumas que temos que fazer inevitavelmente, outras que tentamos postergar para o nosso “bem”. “Bem”, este que é sumariamente subjetivo e que pode nos trazer consequências dolorosas no futuro. Mas nós somos criaturas de carne e osso, nós cometemos erros, deslizes, achamos que tomamos uma decisão certa só para anos depois, notar que não foi a melhor delas.
“Apartment Story” consegue condensar isso em duas horas incrivelmente intensas em algumas vezes, claustrofóbica. O apartamento pequeno em que Arthur vive com seu colega de quarto, que demonstra o começo de uma vida adulta complicada, a necessidade de compartilhar espaços — embora algo humano — seja causado pela necessidade de ter algum grau de independência nos pós anos 2020, ou até antes disso.
Ele também eleva a necessidade de cuidarmos de nós mesmos, mesmo diante das circunstâncias mais peculiares. A história se desenrolava na minha frente e ficava cada vez mais absurda, urgente e violenta. Mas Arthur ainda precisava comer, Arthur ainda precisava ter uma vida. Arthur precisava…. viver.
Seria muito fácil para mim comparar as mecânicas de “Apartment Story” com algo como “The Sims” dado as diversas barras de necessidades (comida, sono, necessidades de ir ao banheiro, etc). Mas aqui não há um exagero visual do jogo da Electronic Arts, a Blue Rider Interactive quer firmar que Arthur não é só mais um “boneco” que você decide a vida. Você, em partes, incorpora ele e as decisões que ele toma refletem de certa forma nas suas próprias decisões.
“Apartment Story” tem algumas limitações devido ao seu escopo. Há situações em que o dinamismo entre os personagens não funciona tão bem quanto deveria. Me vi lavando louças enquanto alguém estava em meu apartamento me ameaçando de morte. Surreal? Sim. Plausível? Também. Mas a forma que o jogo demonstra divide os personagens como uma parede invisível, dois mundos separados onde um não é capaz de tocar o outro.
Eu gostaria que a Blue Rider Interactive tivesse sido um pouco mais… ousada, ambiciosa, transformando o diálogo em algo similar a “We Should Talk” ou fazendo com que os personagens interajam de forma mais proeminente. Ou, quem sabe, pontuar melhor ainda o silêncio dessas duas pessoas com mais firmeza — fantasticamente feito por “The Space Between”.
Mas, em um tipo de mídia que tenta sempre tratar de temas, por mais dissonantes que sejam, com extrema urgência. “Apartment Story” se eleva de uma pilha – atualmente perpétua – de jogos. Ele se esbalda na “monotonia” do dia a dia, na repetição, no “tédio” e na rotina. Isso é o que mais fazemos todos os dias e não notamos afinal já faz parte do nosso eu interior.
Um dia a louça vai estar lavada, no outro? Talvez não. Pode ser que no fim de uma semana você acabe com uma gigantesca consequência dos seus atos. Uma sobrecarga física e mental sem tamanho. Um desejo de jogar tudo para o alto e desistir. O que era um mero prato viraram 12. Uma ligação pode virar a sua vida de cabeça para baixo sem mesmo você ter tempo de pensar.
E, no meio desse furacão todo, você ainda tem que lembrar que é humano. Que requer o seu tempo, a sua “manutenção”, os seus desejos. Que pessoas vem e vão, que às vezes a presença delas na sua vida vai ser impactante ao ponto de perdurar por meses – quem sabe anos. Mas elas não vão mais estar aqui e quem tem que cuidar de você, acima de tudo, é você.
Eu vou acender mais um cigarro depois que terminar este texto sobre “Apartment Story”. Vou olhar a rua, prestar outra vez atenção no trânsito, na correria do cotidiano tanto da minha quanto das outras pessoas. A rotina mata, mas a rotina também permite que você enxergue coisas que sempre estavam à sua frente e você nunca prestou atenção. E, pode ser tarde demais para notar. Espero que, diferente de Arthur, não seja tarde para mim.
Apartment Story
Total - 9.5
9.5
“Apartment Story” é uma incrível experiência sobre monotonia, repetição, cotidiano e rotina. A Blue Rider Interactive traz um recorte da vida adulta nos anos 2020 com os melhores e os seus piores aspectos. Cria momentos de tensão, de paz, de lembrança. E, reforça que haverá momentos em que você vai ter que tomar decisões – e que todas elas têm uma repercussão. Do lavar de um prato ao disparo de uma arma. Nem sempre você vai estar pronto para elas, e está tudo bem.