Eu não tenho um bom histórico com jogos de ação / aventura que usam elementos de humor em demasia para contar a sua história. “Guacamelee” é um excelente metroidvania que em 2024 soa “defasado” por conta de piadas que não fazem mais sentido. “The Last Hero of Nostalgaia” utiliza piadas que só fazem sentido se você for um gigantesco fã da série souls O que acontece, então, quando um jogo de ação vira um “Souls-like” e ainda quer ser engraçadinho? Você ganha “Another Crab’s Treasure” (Steam / PlayStation / Xbox / Switch) da Aggro Crab. A diferença dele para os outros citados é que a desenvolvedora sabe muito, mas muito bem dosar o humor ao longo da inusitada jornada do protagonista Kril.
Tudo começa quando o caranguejo-eremita Kril tem a sua concha “confiscada” por não pagar impostos para a rainha do coral onde ele reside. Aparentemente, no mundo de “Another Crab’s Treasure”, toda criatura marinha precisa pagar impostos na forma de microplásticos. Kril, por literalmente viver quase o tempo todo dentro da sua concha, não foi informado de tal decisão — muito menos de que havia uma nova rainha no coral e que os impostos subiram. Não havia passado nem 10 minutos de jogo e eu já não tinha mais a minha concha; estava em um oceano que desconhecia e sem a menor ideia de onde ir.
A Aggro Crab abraçou o estilo Souls-like. Mapas? Esquece, você tem um compasso que te indica em que direção você está caminhando e nada mais. O resto é por sua conta e risco. Se fosse outro jogo eu até parabenizaria a decisão. Mas em “Another Crab’s Treasure”, a sensação de ficar perdido em um oceano gigantesco é menos “O que será que há depois daquele banco de areia” e mais “céus, eu não consigo enxergar nada na minha frente”. Ainda bem que o efeito visual — que não pode ser desativado, diga-se de passagem — só afeta algumas áreas do jogo e não chega a arrastá-lo para baixo, mas é um incômodo.
Se eu destaco esse ponto negativo nessa crítica, é justamente para contrabalancear com o que a Aggro Crab faz de bom no que diz respeito a “evoluir” a fórmula que a cada dia que passa está mais e mais presente nos mais variados tipos de jogos: conchas. Sem ter uma concha para chamar de “sua”, Kril — e por consequência o jogador — precisa se adaptar ao ambiente. Cada concha possui um percentual de defesa, grau de durabilidade e habilidades especiais. São a sua armadura e a sua “magia”.
Embora outros jogos tenham tentado “diversificar” o estilo de combate de um jogador com inimigos que são resistentes a certos tipos de ataques, ou até novas formas de obter equipamento — sendo a franquia “The Surge” o melhor exemplo disso — é “Another Crab’s Treasure” que consegue esse feito fantástico.
Para quem não me conhece ou não acompanha muito de perto os meus textos, eu sou uma pessoa teimosa — teimosa até demais. Se eu gosto de uma arma ou armadura, eu vou usá-la até completar o jogo sem pensar duas vezes. Não importa se um chefão ou uma área vai me dar dor de cabeça ou triplicar o meu tempo nela; eu vou usar a mesma arma e a mesma armadura e ninguém pode arrancar isso de mim. Bem, “Another Crab’s Treasure” arrancou.
A assustadora variedade de conchas não só se encaixa muito bem com a temática de “não ter uma casa para morar” da jornada de Kril, mas é também uma ótima mecânica para me tirar da minha zona de conforto. Uma hora eu estava usando uma lata de refrigerante cuja habilidade era soltar bolhas e causar danos nos inimigos, outras um copo descartável de café que aumentava o meu dano e minha agilidade.
Nesses momentos a Aggro Crab se sobressai no humor. Lembro-me muito bem de uma situação cabeluda em que eu estava no meio de uma luta contra um chefão e, após receber um ataque feroz, minha “concha” (um chapéu de festa) quebrou. Desesperado, eu peguei a primeira que vi pela minha frente, um copo feito de vidro. Ele não durou nem 30 segundos na minha mão dado a sua baixa proteção e fragilidade. “Eu não sei o que eu esperava acontecer diferente após usar um copo de vidro como concha”, pensei para mim mesmo, enquanto via todo o meu progresso na luta ser levado pelas ondas do mar.
As descrições das próprias conchas e tantos outros itens do jogo são hilárias. Alguns referenciam jogos antigos ou piadas da internet que estão bem sedimentadas na cultura online (ao contrário das de “Guacamelee”), e até aqueles que não acompanham redes sociais — o que deve soar libertador — vão ao menos dar uma risadinha.
Mas o que me faz abrir um sorrisão mesmo são os extravagantes personagens que você vai encontrar ao longo da campanha de “Another Crab’s Treasure”. Claro que, sendo a Aggro Crab, com seu histórico de criticar corporações — vide seu jogo anterior, “Going Under” — uma corporação que quer lucrar em cima de todos está presente no jogo. Embora eu ainda sinta que ela seja uma pontada um tanto quanto “fraca” acerca de corporações gigantes, é melhor do que nada, e a forma como a desenvolvedora aborda o tema para mostrar questões de monopólio de mercado é, no mínimo, digna de explorar mais a fundo em outra matéria.
Quando eu não estava torcendo o nariz por ter que lidar com essa corporação vilã, estava conversando com personagens que usavam pacotes de gel sílica como roupa, um ferreiro que usava uma faca para melhorar a arma de Kril — que não passa de um garfo que ele encontrou no meio de uma pilha de lixo — ou o curador de um museu que tem uma ampulheta daquelas que vem com jogos de tabuleiro como “mochila”.
Esse é o tipo de humor que me agrada demais, e a Aggro Crab conseguiu criar uma estética bem entrelaçada com o fundo do mar e as questões de poluição e transformar o que poderia virar um jogo mediano e pouco inspirado em um que eu me sentia incentivado a explorar mais e mais só para ver qual era o próximo absurdo que ia surgir na minha frente.
Não posso também deixar de pontuar quão boa é a implementação de elementos de plataforma, algo que eu vejo muito raramente em souls-likes, e que “Another Crab’s Treasure” entrega com maestria. O uso de verticalidade não é nenhuma novidade no gênero, mas a Aggro Crab, em vez de usá-la como uma desculpa para transformar mapas em labirintos, consegue usá-la para criar um senso de “imensidão” do oceano. Cada área do mapa é recheada de segredos que você só encontra ao usar o gancho ou se agarrar em redes. Explore bastante e você vai ser recompensado.
Esse desejo de exploração, mesmo com as críticas que fiz acima sobre a visibilidade, e o uso dos elementos de plataforma também foi o que me fez segurar as pontas na segunda metade do jogo, onde alguns sistemas de combate mostram as suas limitações.
O combate de “Another Crab’s Treasure” é brutal. Ele não é um souls-like só no nome. Tenha a sua concha destruída e você certamente vai morrer no próximo golpe. Aprender o timing dos golpes dos inimigos é essencial, e todas as dicas que você tende a ouvir sobre os jogos do gênero também se aplicam aqui. Se você não tem muita experiência, pode se preparar para morrer, morrer e morrer mais um pouco. A Aggro Crab oferece opções de acessibilidade muito bem-vindas, que incluem redução de dano dos inimigos, aumento da sua vida ou, se você preferir, uma “concha-pistola” que elimina qualquer inimigo em um só disparo.
Ao mesmo tempo, a desenvolvedora dá uma deslizada feia em sistemas que eu julgo essenciais. Travar a câmera em um inimigo aqui é uma questão de sorte. Pode ser que a câmera se foque no inimigo que está na sua frente ou, do nada, decida se focar no inimigo que está do outro lado do mapa e você sequer sabia que existia. Resultado? Desespero.
Em dado momento do jogo eu fui emboscado por três caranguejos que estavam escondidos debaixo da areia. Ao invés do jogo travar a mira neles, ele decidiu que um arqueiro que estava bem longe do meu campo de visão era prioridade. Acho que eu devo ter me debatido com o controle tentando voltar a mira para onde eu queria, mas já era tarde demais e lá se foi minha concha. Corri para longe e por sorte encontrei outra (uma bola de tênis). Respirei fundo e tentei outra vez o combate; saí vitorioso, mas eu não precisava passar por toda essa frustração.
Eu teria deixado passar se acontecesse pouco, mas quanto mais eu avançava no jogo, mais o problema aparecia, por conta da densidade de inimigos em cada área. Essa densidade também não é compensada com variedade. “Another Crab’s Treasure” tem pouquíssimos inimigos, a maioria deles variantes de caranguejos com outros tipos de armadura e ataques. Funciona no papel, mas chegou uma hora em que a minha melhor tática era passar correndo pelo mapa até chegar no chefão ou encontrar algum item que poderia ser útil ou engraçado, agarrá-lo e sair correndo de novo.
Mas, de todas as decisões e deslizes que a Aggro Crab fez em relação ao combate, usar um sistema de “habilidades” que precisam ser desbloqueadas é o mais desnecessário. Isso pode ser a minha experiência com outros souls-likes, mas transformar parry em uma habilidade desbloqueável é bizarro. Passei um bom tempo tentando entender como o parry funcionava só para descobrir que eu não tinha comprado a habilidade.
Creio que já deu para notar a minha frustração com partes do combate de “Another Crab’s Treasure”, não? Se por um lado a Aggro Crab conseguiu me tirar da zona de conforto com o seu sistema de conchas, por outro ela me fez interagir menos e menos com ele, salvo batalhas contra chefões, devido a problemas de câmera e baixa variedade de inimigos. São questões que uma ou duas atualizações podem muito bem corrigir, e de acordo com a desenvolvedora, ela já está ciente dos bugs e planeja solucioná-los o quanto antes.
Eu estaria louco se dissesse que eu não terminei “Another Crab’s Treasure”, mesmo com todas as minhas frustrações, sem um sorrisão no rosto. Ainda que ele esteja muito longe do meu souls-like favorito no que diz respeito ao combate, a Aggro Crab mais do que compensa com tantas ideias interessantes e divertidas de explorar. Isso sem contar o já mencionado humor muito bem dosado. Mais uma vez, uma prova de que esse gênero ainda tem muito a oferecer se a desenvolvedora estiver disposta a tomar “riscos” e sair da fórmula tão rígida que outros jogos seguem.
Se você ainda não conhece a Aggro Crab, “Another Crab’s Treasure” é uma excelente introdução à empresa. Uma que vai te fazer rir, frustrar, ficar puto com corporações (coisa que todo jogo devia fazer em pleno 2024), e ser um simpático caranguejo em busca recuperar o seu lar. Espero que eu, um dia, tenha a mesma motivação de Kril.
Another Crab's Treasure
Total - 8
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“Another Crab’s Treasure” vai te conquistar pela fantástica ambientação, personagens carismáticos e uma história muito bem contada e engraçada. A Aggro Crab pode não ter criado o melhor combate, mas ao menos ela faz algo que quase nenhuma desenvolvedora do gênero foi capaz: te tirar da zona de conforto com o seu sistema de conchas, e adicionar elementos de plataforma sem que nem um nem outro destoe do restante da proposta. E, não tenha medo se você nunca jogou algo do gênero; suas opções de acessibilidade garantem que todos possam ter uma boa experiência. Agora vai lá coletar microplásticos e bater em caranguejos. Só não deixe o mar te engolir.