Uma das minhas comparações favoritas para se ter em mente na hora de escrever sobre jogos de administração é a torre de Jenga. O simplístico game de Leslie Scott estabelece regras claras, mas que perduram e evoluem ao longo de uma partida. O aprendizado que pode se extrair dele é que, além de ser preciso ter uma base sólida, é também necessário prestar atenção nas camadas superiores. Um movimento errado e você vai fazer a torre inteira desmoronar. Essa é a ideia que rege Anno 1800 (Epic Games Store / uPlay).
O game de estratégia da BlueByte passou por momentos turbulentos nos últimos anos; a desenvolvedora dava passos largos rumo ao desconhecido, tentava novas mecânicas e conceitos tanto para reduzir o tempo de familiarização do jogador com o universo Anno, como para atrair os veteranos que viam a temática futurística como um “caminho errado”. Eu mesmo estava no barco daqueles que não se adaptavam a essa nova temática, especialmente no que diz respeito a Anno 2205, que não só fragmentou a campanha em missões secundárias e batalhas — que são, e sempre serão um dos elos mais fracos do jogo — como tentou assimilar um conceito de esforço global por parte dos jogadores, devido à vontade da Ubisoft, nessa época, de converter tudo em alguma forma de “Games as a Service”.
Vejo, portanto, Anno 1800 como uma resposta direta aos oito anos de tentativas de “melhorias” que saíram pela culatra. A BlueByte olhou e falou “Quer saber? Dane-se, vocês querem um Anno clássico? Então é isso que vocês terão.” Começar uma nova partida, agora na revolução industrial – temática central do game – é como retornar à própria casa, uma casa não visitada desde Anno 1404, mas uma casa que também teve uma bela camada de renovação.
A BlueByte ter optado pelo estilo clássico — missões condensadas dentro do próprio mapa de campanha, mapas secundários e expedições sendo tratados com a mesma importância da sua ilha inicial — não equivale a um retrocesso. Diria até que é um avanço em múltiplas frentes, ainda mais por ele saber espaçar e manter a minha atenção presa em um só mapa pela maior parte do tempo. Só isso já reduz a quantidade de “esforço mental”, por assim dizer, de você ter de se preocupar se a sua colônia nos cafundós do brejo está funcionando corretamente ou não (ainda tenho péssimas memórias da economia global e falha de Anno 2205, desculpe). E dá espaço para ela montar em cima desse estilo clássico e enfurnar tantas situações no mesmo mapa que vai fazer a sua cabeça girar de tanta coisa para gerenciar.
É aqui que o conceito “Jenga” que falei no começo do texto se aplica. Anno é dividido em “castas” de classes de acordo com o período do jogo. Anno 1800 obviamente nos traz classes como fazendeiros, trabalhadores, artesãos, engenheiros e por aí vai. Cada classe tem um grau de demandas de suprimentos primária e secundária. Fazendeiros requerem um mercado próximo para que consigam comprar comidas e afins, roupas para trabalhar, e de preferência um pub para afogar as mágoas. Trabalhadores já são um pouco mais demandantes, com desejos como escolas para seus filhos, uma alimentação diferenciada com o uso de linguiças, sabão para ficarem cheirosinhos (compreensível depois de trabalhar horas e mais horas em uma fábrica de minério), e obviamente mais bebidas. Artesãos seguem a mesma linha, com ainda mais demandas, mais desejos, e progressivamente mais infelicidade caso você não atenda todos os desejos deles.
Não digo que é uma exata representação das classes do período; afinal, Anno nunca foi um patamar para isso (e nenhum jogo devia ser considerado uma ferramenta de aprendizado histórico; livros existem para isso, afinal de contas). Por outro lado, Anno 1800 não se esconde o fato de que a revolução industrial tem seus paralelos com o período neocolonialista da Europa, o que é demonstrado pelas poucas colônias latinas ainda existentes no Caribe.
Essas colônias entram como o segundo “andar” para manter essa torre “Jenga” de pé. Convenhamos, se tem algo que europeu gostava mais de explorar do que a própria população, eram as suas colônias. Traga um cacho de bananas para a sua cidade principal e você vai ver os olhos de outras companhias brilharem de desejo para comprá-las. Rum? Um sonho. Estabelecer linhas de comércio, portanto, é mais do que essencial. É o que traz o maior lucro para a sua empresa.
Esse setup inteiro para falar de Anno 1800 — o que não é comum para o meu estilo de escrita — é, em parte, para explicar por que a minha primeira colônia falhou espetacularmente. Seis horas de partida, e eu estava em um imenso prejuízo de 3000 moedas, meus cofres se esvaziavam a cada segundo e eu não entendia onde eu errei. Reduzi a velocidade para a menor possível e fui de ilha em ilha para tentar entender o que havia exatamente de errado com o meu império. Era simples: eu não respeitei a estrutura hierárquica de Anno.
Anno 1800 em si não é demasiadamente difícil (ao menos no modo normal), mas ele gosta de esconder certas mecânicas por trás de camadas e mais camadas de informação ocasionalmente ofuscada pela falta de um sistema de overlay, que costuma ser comum em jogos do gênero. O porquê de a BlueByte não oferecer mecânicas como essa ainda se mantém um mistério. Parte de mim gostaria que existisse algo como um medidor ou um ledger para entender quais aspectos da sociedade estão falhando; outra parte de mim gosta muito de saber que eu tenho de me esforçar para entender a organização de uma cidade (que ainda usa o clássico grid da série).
Apesar de ter atingido a estrutura necessária para suportar a segunda “casta” de trabalhadores, o fato de eu estar com sérios problemas financeiros surgiam de duas frentes. A primeira era minha terrível alocação de casas e a presunção de que todos os trabalhadores iriam ficar contentes se um pub estivesse a 300 metros da casa deles. A segunda está relacionada a minha própria experiência prévia com Anno 2205, onde armazéns eram secundários e o envio de bens era mais rápido. Eu constantemente me via lutando para suprir as mais básicas necessidades — como roupas — porque um dos meus armazéns estava longe demais, e o outro sobrecarregado. Respirei fundo e demoli todas as casas, para então reconstruí-las de uma maneira que todos os principais serviços ficassem prontamente disponíveis. Esse pequeno toque já alavancou consideravelmente as minhas finanças, que então começaram a flutuar entre o positivo e o negativo com menor intensidade.
O que revela um pequeno problema de Anno 1800: ele comenta sobre a viabilidade e necessidade desses recursos para evoluir a população para um novo “nível”, mas se esquece de explicar que suprir as demandas de alimentos ou produtos de luxo em 100% resulta também em um aumento da contribuição financeira pelos habitantes (um conceito que aliás está presente em todos os Anno, mas não absolve a BlueByte de ao menos ter relembrado os diferentes tipos de jogadores, seja via tutorial ou uma “tooltip”). Assim que os pubs foram posicionados corretamente, as linguiças entregues e afins, meu império estabilizou. Eu acreditei que a campanha fosse ao menos tocar nesses aspectos — que eu considero essencial para alguém que nunca jogou Anno — mas a BlueByte realmente não comprometeu a sua visão, tampouco o risco de “alienar” ainda mais a sua base de fãs com tutoriais aparentemente “desnecessários”. Uma decisão ousada.
Quando eu comecei a pegar as manhas de novo do que é Anno em si, é que eu me debrucei no deleite de gastar horas e mais horas otimizando cada pedacinho do meu império até que ele ficasse perfeitamente do jeito que eu queria. Ao entrar nessa mentalidade é que lembrei o motivo da franquia ser tão importante para mim: ela é uma das poucas que ainda retém aquela sensação de que o mundo ao seu redor desaparece em meio a números, construções e diálogos entre outros competidores para estabelecer rotas de comércio. Diplomacia, insultos, ameaças de guerra, corrida “armamentista” para conquistar aquela ilha que tem peles – e a noção de que eu poderia ser o principal fornecedor delas – era empolgante.
“Desculpe a demora para responder, eu estava organizando as minhas linhas de comércio”, foi uma resposta dada a alguém durante as minhas aventuras pela revolução industrial. A mensagem que havia me sido enviada tinha mais de duas horas, tal era a minha devoção a Anno 1800.
Isso ainda era bem o começo, que só piorou e expandiu ao atingir artesãos e engenheiros, que trouxeram consigo a demanda por energia, por produtos que vinham das colônias – expedições (um dos conceitos trazidos de volta de Anno 2205, mas dessa vez propriamente implementado) – e o risco constante de que um dos meus aliados fosse me apunhalar nas costas. Como sou daqueles que segue a ideia “antes prevenir do que remediar”, minha frota já estava pronta para o combate.
Como mencionei previamente, Anno não foi um jogo desenvolvido para a guerra. Guerra é o reflexo da necessidade da sua nação em expandir. O combate naval, por consequência, ainda é muito voltado para táticas de ataque relâmpago e desequilibrado de maneiras bizarras.
Gunboats, teoricamente barcos voltados para o combate, são mais fracos do que fragatas — que deviam ser usadas para primariamente para o transporte de bens entre ilhas — e o mesmo vale para as unidades endgame. Um Battlecruiser pode ser lento e poderoso, mas um Ship-of the-Line fará picadinho dele se você não microgerenciá-lo propriamente.
Estendo essa crítica também para a própria diplomacia em si, que segue um pouco do que eu gosto de chamar de “síndrome de Civilization VI”; apesar de não ser tão errática quanto o 4X da Firaxis, algumas decisões tomadas pela IA e o constante vai e vem de pedidos absurdo chega a ser exaustivo. Novamente, é um ponto imperfeito no qual gostaria que a BlueByte tivesse investido um pouco mais de tempo refinandoar.
Mas quando eu olho para o panorama geral, vejo a minha cidade florescer, meus habitantes contentes, corro para corrigir os erros, aprendo com eles e até faço uma reviravolta para sair do prejuízo e voltar ao lucro; quando vejo que essa torre de Jenga está mais uma vez estável, e depois vejo que o relógio já marca três horas da manhã, é quando me vejo perdidamente apaixonado por Anno 1800 – uma sensação que eu honestamente não tive desde Anno 1404.
Eu prontamente falo em muitos de meus textos que nostalgia é tóxica, que olhar para o passado sem aprender com ele pode ser muitíssimo perigoso, e que regurgitar as mesmas ideias sob um novo visual não equivale a uma própria evolução. A BlueByte vai contra essa maré; mostra que aprendeu, que entendeu o que funcionava ou não, e assim criou um dos melhores jogos da série. Com algumas atualizações – e quem sabe expansões – Anno 1800 vai permanecer nesse patamar por muitos anos.
Anno 1800
Total - 9.5
9.5
Anno 1800 é sobre otimizar, sofrer, parar, refletir e planejar. Ele ofusca mecânicas que deveriam ser essenciais para o aprendizado – o que é assustador para novatos – mas te recompensa ao ver a sua cidade funcionando como um relógio produzido na melhor relojoaria da Terra. Retém o que é essência da franquia, mas faz os avanços necessários em áreas chave para que não fique estagnado. Maravilhoso de se jogar, e uma lembrança de que olhar para o passado sem se prender unicamente na nostalgia pode gerar ótimos frutos.