Ratos são um dos animais mais fofinhos desse planeta. Não estou sendo sarcástico; eu acho mesmo que são fofos, tanto que vi um passar correndo pela rua em um dia de chuva e ao invés de nojo eu soltei um “awn, que anjinho”. Com esse pedaço de informação desnecessária grudada na sua mente por toda eternidade, pense que o trabalho da Asobo Studio em gerar tensão, por si só, já é digno de reconhecimento. Mas não foram os milhares de ratos que fizeram eu me apaixonar por A Plague Tale: Innocence (Steam, Xbox One, PlayStation 4); foram Amicia e Hugo.
Sou filho único. Meu contato mais próximo com irmãos ou irmãs se limitou a filhos de padrastos e madrastas. Também não planejo ter filhos – não levo jeito com criança. São confusas demais para o meu gosto, e por isso eu prefiro a escrita, já que ao menos sobre ela eu tenho controle. Eu às vezes não tinha controle sobre Hugo. Uma hora ele decidia correr por um campo de uvas, em outra estava irritado com as palavras de Amicia.
Claro, ele é uma criança – compreensível esse tipo de atitude. Meu coração afundava de qualquer jeito, pois ao mesmo tempo eu sabia que Amicia em parte era também uma criança grande. Duas crianças que viram seus pais serem assassinados pela Inquisição e que não entendem exatamente o que acontece no mundo, muito menos a guerra entre a Inglaterra e França do período.
Ao contrário de Hugo, Amicia quer tentar mostrar ser durona, segurar as pontas para o bem do irmão, para o bem dela, para entender o que esse mundo tem a oferecer a eles. Muitos podem atribuir essa característica a um instinto materno. Patético, eu diria. É nada mais do que o simples ato de sobreviver.
Por mais que a palavra tenha sido apropriada pela indústria de jogos para os mais diferentes fins, são poucos os jogos que realmente definem bem o que é a sensação de sobrevivência. Tempos atrás eu machuquei sério a minha cabeça, abri um corte, sangrou, devia ter levado ponto e não levei, enfim, foi um inferno e o corte ainda está cicatrizando enquanto eu escrevo esse texto. Muitos me questionaram por que eu não fui imediatamente para o hospital – era a coisa mais “lógica” a se fazer, não? Bem, aí é que está: o meu corpo e mente entraram em um estado de sobrevivência, e com isso imediatamente após notar o corte eu fiz uma lista mental do que podia ser feito naquele momento sem perder o foco de que era temporário. Limpar o rosto, estancar o sangue, verificar por mais cortes e aí sim procurar ajuda. E se você já passou por qualquer tipo de acidente ou momento traumático na sua vida sabe bem do que eu estou falando. Sobreviver nem sempre implica escolha, mas frequentemente inclui racionalizações e justificativas que nascem de uma lógica deturpada que naquele momento faz todo o sentido para você.
No primeiro momento que Amicia é forçada a matar alguém por sobrevivência você sente uma forte hesitação na voz dela seguido de um pedido de desculpas. “Eu não queria fazer isso”, disse ela. Ao invés de dar margem para uma imensa discussão sobre a moralidade do assassinato, a Asobo imediatamente fecha essa porta ao demonstrar a transição e transformação emocional de Amicia pelo ato. Ela nunca mais foi a mesma depois disso.
Essas variações de estados emocionais são os maiores triunfos da Asobo, muito bem executados pela a equipe de dubladores contratados para os papéis principais de A Plague Tale: Innocence; é um jogo de que consegue demonstrar apreço e cuidado em destacar o emocional sem cair na armadilha do exagero.
Me parece que todo jogo que trata sobre qualquer tema no mínimo apocalíptico tem de usar-se da mais extrema dor para causar choque ou alguma resposta emocional do jogador. O jogo tipicamente estabelece um motivo (perda), e ao invés de usar esse motivo para prosseguir com a história, coloca mais e mais “possíveis motivos” para exemplificar ou exacerbar a questão da perda, ao ponto de virar quase violência gratuita. A Plague Tale: Innocence é repleto de violência sim, mas muita dela está ou ligada a acontecimentos na região, à praga dos ratos em si — que é parte da temática geral — ou é consequência de atos de terceiros. O que é importante para A Plague Tale é passar como essas cenas são carregadas pelas personagens na forma de marcas emocionais ao longo dos capítulos.
Existe uma cena bem no começo do capítulo 5 onde Amicia e Hugo precisam passar por um campo de batalha, onde é de se esperar que haja uma quantidade massiva de corpos. Em dado momento Hugo trava; não consegue mais andar por conta do ambiente que está ao seu redor. Amicia reforça a voz e lembra Hugo dos sapos que viram algumas horas atrás para tentar tirar o foco dele da situação. Funciona, mas sinto que o Hugo a partir daquele momento também mudou um pouco.
E, quanto mais elementos são jogados nessa fogueira de emoções, mais forte fica a relação entre Hugo e Amicia, mais intensos ficam os momentos, e a toda hora você acha que cedo ou tarde a história vai dar uma deslizada, descaracterizá-los ou algo assim. Pois é com isso que eu estou tipicamente acostumado em jogos, com a noção de que ou o personagem tem um tom durão, ou algum acontecimento vai marcá-lo o suficiente para deixá-lo assim pelo resto da eternidade. Tratar qualquer sensação de dor emocional como permanente é uma péssima ideia, e A Plague Tale: Innocence sabe disso. Todavia, ele também não sabe bem como lidar com elementos pontuais, sejam estes ligados ao emocional dos personagens dos coadjuvantes, ou o próprio conceito de ser um “jogo” em si.
Não deixa de me surpreender que, em pleno 2019, ainda temos que justificar a existência de jogos pelas mecânicas que os cercam e não pela resposta emocional que eles nos trazem. A Plague Tale: Innocence é linear ao ponto de considerá-lo mais um adventure game do que algo próximo a stealth ou ação. A Asobo poderia tê-lo resumido a andar em uma linha reta por mais de 10h com as famosas “set-pieces” (que nem são tão set-pieces assim, mas mais eventos para definir o tom de um capítulo) que ainda assim o roteiro — no que diz respeito a Amicia e Hugo — seria bom. Quando ele foge dessa linha e os elementos extras entram em cena é que ocorre uma forte perda de foco.
A cena onde Amicia é forçada a matar alguém trata exatamente da delimitação na liberdade de escolha por parte do jogador – na sobrevivência. Ter de passar por um campo cheio de guardas e ainda ficar de olho em materiais para a criação de itens ou de (ugh) “melhorias” para o equipamento de Amicia cria a falsa ilusão de “liberdade”. Eu e você sabemos que vamos buscar a melhor maneira de “otimizar” a obtenção de itens, a melhor “maneira” de lidar com os guardas. Não havia necessidade.
Uma das dezenas de exemplos que posso dar é SOMA. Eu amo o jogo, é um dos meus favoritos e marcou a minha vida de formas inesperadas, e nunca se apoiou em mecânicas supérfluas para contar a história; ela simplesmente se desenrola pela ativação de terminais e afins. No caso de A Plague Tale, até mesmo os ratos, que são tão proeminentes na trama e na própria temática do jogo, têm um fundo mais “mecânico” do que serem uma verdadeira ameaça. Tanto é assim que as partes mais emocionantes do jogo são geradas por interações humanas, não pelos animais.
Por outro lado, eu entendo essa necessidade de criar esse “colchão protetor”; estamos tão acostumados a uma indústria que se comunica por meio do dramalhão e da violência, que parece essa a única forma de passar emoção e interatividade para um espectador quase anestesiado.
Sequer ouso culpar a Asobo Studio disso, tampouco de injetar temas nos capítulos finais que pertencem mais a um estilo “filme de segunda”, quando comparados aos capítulos iniciais. Também sinto algo similar quanto aos personagens coadjuvantes — que aparentam estar presentes só para o “mundo não ficar vazio”, limitado a apenas Amicia, Hugo e os ratos. Ainda há muita resistência por parte da indústria e dos jogadores de algo menos impactante, em todos os espaços (seja AAA, AA, ou o nome que você quiser dar para isso). Só acredito que eles deviam ter sido mais firmes na decisão de se focar no desenvolvimento emocional dos protagonistas ao longo da jornada toda.
Em completo contraste, jogá-lo me fez lembrar uma passagem de STALKER. O filme do cineasta russo Andrei Tarkovski, que usa e abusa de cenas longas e muitas vezes estáticas para contar a passagem de três homens pela chamada “Zona”, conta com uma bela passagem sobre resistir e sobreviver. Enquanto tenta encontrar uma passagem segura, o protagonista que leva o nome do filme, reflete sobre o significado de viver e morrer e reza pelos seus companheiros de viagem. Para ele o homem nasce “gentil e maleável”, e quando ele morre, ele está “forte e duro”. Por outro lado, as árvores também têm esse atributo, mas é quando elas ficam fortes e duras que morrem. Portanto, ser flexível e moldável são o que caracteriza a vida, enquanto a dureza e a força são companheiras da morte.
Gentileza muitas vezes é dada como fraqueza – a mesma que você vai ouvir na voz trêmula de Amicia e Hugo em vários momentos de A Plague Tale: Innocence . Mas é nessa gentileza, na flexibilidade com que a personagem consegue sair do seu estado de “sobrevivência” constante e crescer. O contrário acontece com a Asobo em si; é a resistência a mudar – a necessidade de seguir valores definidos pelo “mercado” – que reduz um tanto o brilho do seu próprio trabalho. Me pergunto se as coisas estariam diferentes se, como Tarkovski, a desenvolvedora tivesse colocado uma cena estática por cinco minutos focada no ponto mais forte dela – Amicia e Hugo – ao invés de me fazer coletar recursos.
A Plague Tale: Innocence
Total - 8
8
O pior defeito que a Plague Tale Innocence carrega é a necessidade de se justificar como um jogo. A história de Amicia e Hugo e o mundo que está ao seu redor são emocionantes e um excelente exemplo de como caracterizar sobrevivência e mudanças emocionais. Pena que uma indústria que teima em não aceitar trabalhos com pouca interação como jogos “de verdade” tenha acabado impondo seus traumas a um jogo que seria perfeito mesmo sem essa interação. De certa forma, a Asobo também existe num mundo hostil, repleto de Inquisições e massas de ratos, e isso deixou suas marcas.