Você já teve aquela sensação de estar feliz por algo existir, mas pelo destino ou algo, uma peça falta e você não consegue se conectar completamente a ele? É estranho, não? Jogar Tooth and Tail (Steam, GOG, PlayStation 4) foi assim.
O game de estratégia desenvolvido pela Pocketwatch Games tinha tudo para me agarrar: um simpático design de unidades, uma trilha sonora agradabilíssima e uma arte de se apaixonar. Detalhes superficiais que se desmancham no segundo em que se começa a entender as mecânicas e treinar partidas.
Não é de hoje que existe uma certa noção de que jogos de estratégia são demasiadamente complicados. Saudosistas falam que os títulos de antigamente eram mais “divertidos” ou que eram mais “fáceis de entender”. Tooth and Tail tenta destilar elementos que supostamente transformaram o gênero em um nicho, e assim tentar fazer o gênero novamente mais acessível. O que acontece na realidade é uma redistribuição de grau de importância de muitos sistemas, nem sempre para o meu gosto.
Ao contrário dos jogos de estratégias mais tradicionais, Tooth and Tail aposta na geração procedural de mapas para os cenários de single-player e multiplayer. Nas palavras dos desenvolvedores, o uso de tal sistema serve para que duas partidas nunca sejam as mesmas e que os jogadores tenham de desenvolver táticas ao invés de memorizar.
Mas estratégia nunca foi sobre memorizar, ao menos não completamente.
Memorizar uma build order (a ordem que você tem de construir bases e unidades) de Starcraft, por exemplo, é apenas uma etapa na tarefa de aprender a jogar com uma raça. Supor que memorizar vai ganhar alguma partida é apostar no desconhecido. Diversos fatores influenciam a build order e as táticas mudam. Um avanço repentino do oponente equivale a você ter de contra-atacar antecipadamente. E entender como o mapa funciona, quais pontos e zonas de controle podem ser criados, acaba ajudando na estratégia e na diversão, ao invés de “engessar”.
Também não compro a ideia que uma partida necessariamente vai ser idêntica por ser o mesmo mapa. Eu jogo Q3DM6 (um dos mais famosos mapas de Quake 3) há quase 20 anos. MOBAs como League of Legends, DOTA 2, dentre outros, são imensos pela intensidade e modularidade da partida. Você tem conjuntos de regras que se adaptam de acordo com as muitas diferentes ocasiões e minuciosidades que tornam os confrontos emocionantes. Acontece que Tooth and Tail, ao tirar o foco do conhecimento de um mapa pré-definido, dobra a carga de trabalho sobre esses sistemas. Uma decisão ousada e louvável, mas que não necessariamente gera resultados agradáveis.
A utilização de mapas procedurais tem seus méritos – afinal, é uma maneira interessante de modelar um mundo distópico onde animais tentam batalhar por comida – e ocasionalmente resulta em momentos instigantes e emocionantes; mas, muitas vezes – especialmente na campanha – acaba gerando mais frustração do que qualquer outra coisa.
Uma campanha excelente vem da geração de incerteza por meio de fatores pré-definidos. Tais fatores se aplicam em Tooth and Tail como a forma que os objetivos são apresentados. Um mapa onde é necessário resgatar X aliados vai de fato ter aliados em um ponto do mapa, mas não dá a certeza de que você iniciará em uma posição de igualdade em relação ao inimigo. E mesmo em fases onde há a necessidade de desigualdade de forças, poucas são as garantias de que você tem uma margem para erros. E, para um jogo de estratégia em tempo real para novatos, isso é uma falha crucial.
Para se ensinar é preciso fazer com que o jogador aprenda com os erros. Essa falha não é inerente a Tooth and Tail, mas uma característica do gênero de maneira geral. Não existe um elemento que facilite o compreendimento do que exatamente aconteceu de errado. O que fazer? Recomeçar a missão, torcer para que a geração procedural seja um pouco mais amigável. Estaria mais do que contente em fazer isso em um roguelike. Não em um jogo de estratégia.
A fundação de Tooth and Tail é posta realmente a prova quando o assunto é jogar partidas multiplayer. Até que ponto você pode redobrar os esforços e apoiar-se no uso de um exército para dominar um mapa supostamente desconhecido?
No início de cada partida o jogador pode selecionar seis unidades de um total de 20. O conceito é que o jogador tenha uma certa liberdade para construir o exército, mas que ainda tenha que tomar decisões importantes em relação a composição: custos de produção, tempo de produção, pontos de vida, etc.
Há um interessante uso de sinergia em ação. Os jogadores podem ter a mesma “pool” de unidades, mas as táticas são tão variadas que só de teorizar as composições meus olhos se enchem de lágrimas de emoção. “Deveria usar sapos com dinamite para danificar as unidades, ou apostar na marmota que tem mais pontos de vida e é excelente contra edificações, porém incapaz de atacar inimigos? ”
A parte de teorizar é ótima. Colocá-la em prática é que é o problema.
Desenvolvido para ser jogado com um controle, a PocketWatch Games optou para tornar o personagem principal essencialmente o próprio cursor. Ou seja, você precisa movimentar o personagem para a área desejada e determinar pontos de ataque — via a seleção de um grupo específico de unidades do mesmo tipo ou o exército completo.
A ideia em si funciona bem durante as primeiras fases do confronto. Comandos simples de se entender exaltam o minimalismo e a funcionalidade de muitos aspectos de Tooth and Tail. Clicar na área onde o personagem está situado movimenta as tropas para um estado de ataque. Segurar o gatilho define um alvo em específico, e longe do alcance dos inimigos o mesmo comando é usado para recuo. No decorrer da partida os sistemas começam a falhar; avançar e recuar as tropas começa a causar dor de cabeça dado o exagero no aspecto visual e sonoro.
Estética sobre função, pouca diferenciação nas unidades salvo as cores da facção. Já não sabia mais para que lado eu olhava. As minhas tropas estavam à minha frente? Não? Talvez? “Recuem suas antas!”, resmunguei até perceber que as tropas eram do inimigo e as minhas não estavam mais no local. Meu personagem foi morto e tive de esperar alguns segundos para renascer na base. A essa altura minhas defesas já haviam sucumbido a uma invasão de sapos-explosivos. Bem, ao menos foi engraçado.
É frustrante descrever isso, pois clareza visual é essencial em um jogo de estratégia, e a maneira com que Tooth and Trail utiliza exageradamente o brilho na tela, explosões e áudio acaba fazendo as batalhas serem mais desconfortáveis e caóticas do que precisam ser.
Creio que exista muito espaço para tornar o jogo mais acessível, ainda mais no aspecto visual. Ajustes na diferenciação de unidades, variedade de sons e pequenos avisos sonoros de situações importantes ao invés de bolhas de fala soltadas pelo protagonista já seriam um grande avanço e reduziriam a carga de trabalho do controle de unidades para outras áreas sem que o jogador perdesse o foco.
Vejo a redefinição de prioridades — a base na qual Tooth and Tail foi construído — como o ato de virar uma camisa do avesso e falar “não repara na etiqueta, é diferente”; dizer que é acessível para novatos é um tamanho exagero.
Ele cai nos mesmos buracos que tantos outros do gênero caem, mas com agravantes visuais, gera os mapas proceduralmente e — de longe o que eu considero a pior decisão — um multiplayer que usa uma trava de região. Está no Brasil e quer jogar uma partida ranqueada? Boa sorte.
Mas dentro dessa salada mista gigante que é Tooth and Tail, ele ainda consegue trazer mecânicas fundamentais que sempre foram problemáticas de ensinar ou praticar em outros jogos do gênero, como, por exemplo, reconhecimento de terreno.
Esse elemento essencial é algo que poucos jogadores sem contato com estratégia têm o costume de fazer. Para alguns é só sentar, fortalecer a base, criar exércitos gigantes e partir para o ataque. Mas não há como atacar sem ter seu personagem por perto para dar ordens nem explorar o mapa. Consequentemente, reconhecer o terreno, estudar fraquezas vira uma segunda natureza. Como alguém que já tentou explicar por inúmeros métodos a importância de reconhecimento, ver como esse jogo consegue fazer isso de maneira simples me impressiona.
O uso constante de recursos— comidas produzidas por fazendas — para a criação de novas plantações, bases e unidades, assim como a intensidade com que eles se esgotam também se estabelece como uma excelente ferramenta anti-turtling (o ato de usar estratégias que enfatizam a defesa). É uma das opções mais seguras para os jogadores que estão começando no gênero e Tooth and Tail é eficaz em quebrar esse paradigma de cara. Ou você expande, ou você morre.
Me via estranhamente atraído para jogar mais partidas. Não por estar ansioso por vencer uma, mas para compreender o quanto a empresa foi capaz de mudar essas perspectivas com pequenos ajustes. Não aposta na famigerada nostalgia como fez 8-bit Armies e não se submete ao estilo de controle tradicional aplicado em Halo Wars. É peculiar, estranho, muitas vezes confuso, diferente. E o diferente me atrai.
Por mais que seja a camisa virada do avesso, que carrega algumas das manias do gênero e não se “vende” como prometido — afinal a realidade sempre é mais dura do que o simulacro que criamos em nossa mente — Tooth and Tail joga certas questões sobre como vemos certos jogos de estratégia e como mecânicas podem ser adaptadas para outros contextos.
Jogos não necessariamente precisam existir puramente para a proposta de divertir, isso já caiu por chão faz anos. Diversão é o cúmulo da subjetividade (ainda mais para gente como eu que gosta de simuladores de trens). Eu gosto quando jogos conseguem trazer, mesmo que por meio de tropeços e erros, questionamentos importantes. Tooth and Tail faz isso.
Se tem algo que eu respeito é ver uma empresa tentar algo fora do padrão. O padrão nos traz comodidade ao invés de perguntas. Nos impõe que o formulaico é o que interessa. Jamais vou me sentir plenamente satisfeito com o que Tooth and Tail oferece, mas não posso negar, é uma intrigante demonstração do que pode ser feito para repassar o conhecimento em estratégia de uma forma mais tátil para um grupo abrangente. Para uma empresa que nunca fez um jogo de estratégia, está aí uma prova que às vezes precisamos de alguém de fora para conseguir enxergar as dificuldades com as quais nos acostumamos.
A análise foi feita com base na versão PC enviada pela Pocketwatch.
Tooth and Tail
Total - 8
8
Ainda que carregado de vícios do gênero e inconsistente em certas áreas, Tooth and Tail merece o devido reconhecimento. Não é sempre que somos desafiados a rever como enxergamos a utilização de comandos junto a sistemas minimalistas e o ensinamento de mecânicas-base. Uma importante peça de estudo para qualquer entusiasta do gênero.