A cada título Cyberpunk lançado nos últimos anos, Deus Ex, Shadowrun, menos eu sinto que são capazes de absorver a ideia da ambientação. Um foco demasiado em high-tech, uma distopia mascarada entre luzes de neon e gadgets. Observer (PC, Xbox One, PlayStation 4), da Bloober Team (Layers of Fear), se alimenta de uma severa sensação de decadência, de abandono. É nela que ele encontra o seu poder de contar histórias interessantes.
A trama começa com o detetive Daniel Lazarski, um Observer — aqueles que possuem o poder de entrar na mente de vítimas e desvendar segredos sobre sua morte, sentado em um carro. O ano é 2084. Em uma Cracóvia futurista, uma praga digital dizimou parte da população que tomou para si a oportunidade de usar implantes biônicos, enquanto uma guerra destruiu o que restava das superpotências do mundo. Agora quase tudo é controlado pela gigante corporativa Chiron, que também emprega Lazarski.
Se a introdução soa como uma trama de proporções gigantescas, pode abaixar as expectativas. Observer trata do intimismo, a relação do homem com a tecnologia no futuro de uma forma que poucos jogos são capazes de demonstrar.
Da mesma maneira que Layers of Fear — que assumidamente não joguei — de certa forma se limita em um ambiente, Observer usa como palco da sua história um conjunto habitacional no distrito C de Cracóvia, algo como a classe mais baixa, mais “degenerada” da população. Lazarksi caminha pelos seus corredores, observa pistas por meio de visões biométricas e eletrônicas. Sua busca por respostas me faz sentir mais em um adventure do que um jogo de terror.
Eu não posso dizer, de uma posição de privilégio, que eu tenho uma completa noção do que classes menos favorecidas ou marginalizadas passam no dia a dia , tampouco quero roubar suas vozes nessa luta. Entretanto, a visão que encontrei nos inquilinos desse estranho prédio se assemelham em muitos momentos de situações que eu vivi na minha vida. O “viver dia após dia”, a incerteza, a tentativa de encontrar estabilidade no caos.
Observer não transpõe seu medo por meio dos “jumpscares”, ou da constante presença de um mal — mesmo que faça uso dessas artimanhas vez ou outra. É a inquietude de ver a luta pela sobrevivência daquela população, de Lazarski em si e da busca por seu filho, o motivo que o levou para aquele prédio.
Sua história se interliga de maneira natural aos habitantes com quem ele conversa por informações. Pessoas de passados gloriosos, esquecidos por corporações. Aqueles que tentam uma nova vida após cometerem erros fatais, oportunistas, pessoas que cobiçam os prazeres dos outros, ou uma chance de redenção — mesmo que temporária.
Não é um jogo carregado de escolhas, em partes demasiadamente linear. O que ele almeja é que nós, jogadores, consigamos decifrar as escolhas tomadas por aqueles com quem interagimos. Enxergar sem julgar, aprender a ouvir o outro. É assim que as sequências onde Lazarski “invade” os sonhos de outros, entende seus pesadelos e medos, ganham ainda mais potência.
Glitches, imagens deformadas, resquícios de sonhos e de memórias demonstram o quão emocionalmente destruídas aquelas pessoas foram, pelas escolhas ou pela vida. Esses breves encontros revelam de forma nua e crua a imensa fragilidade do ser humano. Quem não tem medos? Quem não aplica a sua própria narrativa em memórias como uma maneira de amenizar a dor? Seja ela de uma perda, de uma separação, do amor.
A cada momento dentro da mente dessas pessoas é uma troca. Cada vez que Lazarski invade a mente dessas pessoas, ele deixa um pouco de si e adquire um pouco do outro. Tais etapas não são necessárias apenas para para avançar na trama, elas geram uma nova visão sob o que aquela pessoa passou para chegar ali.
Evitando o máximo possível em entrar em spoilers, um dos pequenos encontros não ligados à trama é sobre um homem que, para tentar fugir do cotidiano, usa um capacete de realidade virtual ao ponto de não conseguir diferenciar o que é ou não a sua realidade. Escrito assim pode até soar clichê, a velha história da “realidade virtual pode nos tornar vegetais”.
Mas a forma que a cena é entregue ao jogador, a excelente atuação de Rutger Hauer (Blade Runner) no papel de Lazarski e um homem atrás de uma porta de ferro, presa por inúmeras barras de proteção amplifica a mensagem. O tom cansado de Hauer, o senso de desespero do homem, as barras que criam um distanciamento da realidade do jogador com a realidade daquele coadjuvante. Uma sensação de que daquele ponto em diante, a sobrevivência daquela pessoa seria via a sua remoção da realidade.
Se a fábula da realidade virtual é clichê demais, considere os motivos pelos quais alguém recorre ao crack. Uma pesquisa feita em junho de de 2017 em São Paulo mostra que mais entre 15% e 16% delas usam por problemas familiares, financeiros ou afetivos. A droga no caso não é uma solução, é um alivio. (Mais informações sobre o assunto podem ser encontradas nas entrevistas com Carl Hart no JusBrasil, BBC e Época). Tal metodologia para fuga da realidade — e consequentemente dos problemas — é o mesmo que os habitantes do conjunto habitacional da Cracóvia futurista apresentada em Observer buscam.
A sensação de aprisionamento dentro do prédio é extremamente real. Sobe escadas, desce escadas, primeiro, segundo, terceiro andar. Todos com o tom sombrio e decadente. O reflexo de uma sociedade subjugada pelos detentores de renda e informação.
Jogue fora a carga pesada de narrativas elaboradas como as que se vê em Deus Ex: Human Revolution, os plot twists de sempre entender a motivação por trás de um vilão. Dele balbuciar as mesmas artimanhas. “É para um bem melhor”, ou “A sociedade fará isto ou aquilo”. Há momentos em que imagens valem muito mais do que palavras, e mostrar como a humanidade se corrompeu àquele ponto é mais importante em Observer.
É uma pena que a trama principal se perde um pouco em meio esta crítica e acaba por seguir uma linha mais tradicional, mesmo que com boas reviravoltas, e também se faz refém de problemas como a necessidade de usar partes de “stealth” em favor de adicionar um pouco mais de “mecânicas”. Consequentemente, os momentos finais perdem um pouco da incrível energia que carregava até então.
Mesmo que esta redução aconteça, Observer é brilhante quase todos os outros aspectos. A veracidade de como dispõe um apartamento mal arrumado, o abandono e esquecimento sentido por aqueles moradores. O ressentimento de quem tomou escolhas e agora vive com elas.
Em 2016 o meu jogo de terror favorito foi SOMA, pois nele é apresentado o medo de estar sozinho, de não ter um futuro e do esforço que é feito para que isso não aconteça. Observer mostra uma realidade profundamente contrastante, a dificuldade de viver com os erros do passado, de tentar aceitar quem você é. De alguém te enxergar além de sua máscara, ver seus componentes internos. Apodrecidos, cansados, repletos de mágoa. Às vezes nada é mais assustador do que olhar para nós mesmos.
Observer
Total - 9.5
9.5
Uma espetacular viagem ao abismo da realidade humana, que demonstra a dura subsistência de grupos marginalizados e esquecidos em um futuro distópico e os diferentes caminhos que usam para sobreviver e tentar diminuir a dor. Aqui o horror não é o sobrenatural, somos nós mesmos.